A saga de um endividado
Passada a hora do jantar, ouço a cantilena dos filhos indo para a cama. Nada muito diferente da época em que não se esperava o papai mandar, desejando bons sonhos e um alegre despertar.
Despertar! Hora em que uma gerente de banco liga e deixa recado de voz, outra envia mensagem de texto, e mais uma, todas, por telefone ou e-mail, querem saber o que está acontecendo e eu imploro aos deuses que essa tortura termine. Até onde cheguei…
Bem que a Mônica sempre, a vida inteira, me disse o quanto eu era desorganizado. E sou. Mas estudei, passei no vestibular da melhor universidade, aprovado no disputado curso de medicina. Foram muitos dias e noites estudando. E depois da residência pude, enfim, exercer a tão sonhada profissão.
Aprovado em dois concursos públicos, dois hospitais privados, consegui me credenciar nos principais planos de saúde. Agenda cheia para os próximos 365 dias! Sabe o que é isso? Estou trabalhando muito, mas não se preocupe, estou feliz assim.
Algumas desistências, tudo bem, acontece. Cancelamentos de agenda continuam. Será que o problema sou eu? A secretária diz que todas as pacientes me mandaram um forte abraço, mas com a demissão perderam também o plano de saúde.
Os bebês de cinco pacientes devem chegar logo. Não posso abandoná-las, o financeiro eu resolvo depois. O que dizer para as gerentes? Melhor dormir, amanhã eu penso.
O dia chega e atualizo meu saldo negativo. Tudo isso!? Penso nos filhos, lindos. A escola, o condomínio, o clube. A empregada, sim, é preciso pagar. Minha mulher, Mônica, grita, vamos perder o apartamento! O meu carro? Pode levar. O dela? Fazer o quê? Incluindo o financiamento do apartamento, devo quase R$ 3 milhões. E minha renda, que já foi R$ 50 mil, hoje não chega a R$ 20 mil.
Como um leão abatido, procuro o advogado que me informa que, se pedir insolvência, terei uma série de restrições na capacidade civil. Me tornarei um coiote, entre leão e coiote, melhor ser Eduardo mesmo.
Minha vez de ligar! Ligo e no (ainda) meu consultório, me reúno com todas as gerentes. Em tom franco e solene, informo: deduzidos os bens que vos entrego, me resta a renda dos serviços públicos, hospitais e consultório. Renda de R$ 20 mil, ante uma dívida restante de R$ 1,2 milhão.
Respiro aliviado! Antes, tinha um problema que me tirava o sono. Agora, o problema é dos bancos também, perante minha declaração de impossibilidade de cumprir os termos contratados. Juntos, devedor e credores, teremos de encontrar uma solução. As gerentes prometem trazer as posições dos bancos após as consultas de excepcionalidade.
Hoje, não sei se estou triste ou feliz, se conseguirei (ou não) trazer de volta a minha família. Neste momento, a única certeza que tenho é o dever de trabalhar muito para gerar renda mínima de R$ 20 mil e pagar, aos bancos, R$ 6.000 mensais pelos próximos 12 anos.”
A saga de Eduardo teve início com as ligações amigáveis dos bancos, questionando quando pretendia pagar as prestações em atraso. Cerca de 90 dias depois, o tom da conversa mudou. Uma empresa de cobrança terceirizada, remunerada pelo sucesso de conseguir (ou não) o pagamento de dívidas atrasadas, passou a ligar em tom bem menos amistoso.
Eduardo foi notificado formalmente aos 15 dias de atraso. Seu nome, apontado no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) antes do 30º dia. A negativação é um alerta para outras instituições financeiras. Na dúvida, elas cancelam linhas de crédito e tentam renegociar o saldo devedor existente. A pressão aumenta. Além do SPC e da Serasa, o Sistema de Informações de Crédito (SCR) do Banco Central aponta os créditos vencidos.
Impossível manter sigilo sobre essa delicada situação.
Eduardo buscou (e acreditou) na renegociação das dívidas a partir dos 90 dias. E, embora se diga que os descontos chegam a 60%, é bom saber que raramente as instituições abrem mão do valor emprestado. Os descontos normalmente se referem a multa, juros de mora, taxa do contrato, entre outros encargos.
Após cinco anos, os bancos retiram o apontamento, já contabilizado como perda. Tempo de desistir de receber e tocar a vida. Mas não se anime com essa perspectiva, será que vale a pena fechar a porta de acesso ao mercado de crédito?
Fonte: Folha de SP – Márcia Dessen