Covid-19 e criminalização da inadimplência
Muito provavelmente nem o melhor livro de ficção teve criatividade suficiente para retratar os dias atuais. Quarentena, lockdown, home office, suspensão de contrato de trabalho são algumas expressões com as quais passamos a conviver e cujas consequências econômicas terão impacto expressivo em termos mundiais.
No contexto, literatura interessante tem sido produzida considerando os mais variados desdobramentos, especialmente no tocante ao enxugamento de etapas produtivas, tanto para a indústria, como na atividade de prestação de serviços. Parece óbvio, então, que os problemas do nosso sistema tributário serão visíveis, na medida em que muitos dos tributos vigentes têm importante capacidade arrecadatória num cenário complexo de etapas produtivas. Reduzidas referidas etapas, o impacto na arrecadação será automático.
A inadimplência ocasionada pela pandemia pode ser argumento para afastar a tipicidade da conduta
Reforma tributária e tamanho do Estado terão que ser enfrentados de verdade. Se já estavam na ordem do dia antes da covid-19, depois dela passam a ser uma questão de sobrevivência. Mas não é exatamente sobre isso que vamos falar. Se o sistema tributário como um todo se apresenta agora mais do que nunca impróprio, que dirá então o convívio do empresário com recente interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) de ser crime o não recolhimento de tributos, mesmo que devidamente declarados à autoridade fiscal, a teor do que efetivamente foi decidido no âmbito do ICMS próprio.
Como se sabe, decisão em Plenário do STF no HC 163.334 consignou ser crime de sonegação fiscal deixar de recolher o ICMS, mesmo que declarado à autoridade fiscal. Tal decisão merece críticas, por admitir a prisão por dívida tributária, expressamente vedada pela Constituição Federal e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como é o caso do Pacto de San José da Costa Rica. Mas é uma realidade e começa a gerar efeitos práticos.
Ainda que essa orientação não tenha efeitos vinculantes, nem seja definitiva, já que sobre ela pende recurso do contribuinte para que sejam esclarecidos aspectos importantes da decisão, é um precedente importante que será seguido por juízes, desembargadores e pelo próprio STF.
A questão prática: vivemos em tempos de pandemia e de consequente crise econômica, onde a dificuldade para o pagamento de imposto surge para inúmeras empresas. Tal cenário ganha cores dramáticas quando mesmo o contribuinte de boa-fé, que declarou o imposto, é considerado criminoso pela falta de pagamento.
Mas o próprio STF, na decisão apontada, reconheceu limites à criminalização. O voto vencedor do ministro Barroso indica que “não haverá crime no caso de o comerciante em situações excepcionais deixar de pagar o tributo em um ou outro mês”, e que o dolo estaria presente apenas na conduta do devedor contumaz, que faz da sonegação uma estratégia negocial e que financia seu negócio pelo inadimplemento tributário constante e/ou pela prática de concorrência desleal em comparação a seus concorrentes.
Diante disso, a inadimplência excepcional ocasionada pela pandemia pode ser argumento para afastar a tipicidade da conduta. Embora as dificuldades econômicas possam ser consideradas casos de inexigibilidade de conduta diversa, que desculpam o agente do crime, o STF admitiu que a eventualidade ou excepcionalidade do não pagamento afastam o dolo de sonegação. Ainda que tecnicamente tal premissa possa merecer reparos, será usada para afastar o caráter criminoso da sonegação, em especial nos casos em que o contribuinte declara o imposto devido e deixa de recolher o valor aos cofres públicos por incapacidade econômica demonstrada.
Outro recurso cabível é o acordo de não persecução penal. Por meio deste expediente, o empresário inadimplente incapaz de pagamento pode firmar com o Ministério Público um acordo pelo qual confessa o crime, repara o dano causado dentro do que se apresente possível e presta serviços à comunidade. Importante pensar que no momento da fixação do montante necessário para reparar o dano seja levada em consideração a situação de vulnerabilidade e de crise pela qual passa o comerciante. Ainda evitará a ação penal e manterá sua primariedade, desde que o Ministério Público entenda adequada a medida. Sem sombra de dúvida um eficiente expediente para situações práticas extremas.
Muitas questões ainda surgirão em decorrência da decisão do STF, mas a fixação de algumas balizas e alternativas é necessária, para que o direito penal não se torne apenas um instrumento de arrecadação fiscal, incapaz de distinguir o sonegador profissional daquele que deixa de pagar diante de uma crise específica.
Fonte: Valor Econômico.